Cult-novela

CAPÍTULO UM

30/01/2010 12:24

Leite e Álcool

 

Eu estava a cem quilômetros por hora, dentro do meu querido Passat 1980, ao som de Roll with it, da banda Oasis. E não estava nem aí pra mais nada.

 

Eu queria era correr.

 

Talvez chegaria aos cento e cinqüenta, ou até mais, se não fossem os outros carros na Avenida Paulista me atrapalhando. Eles pareciam umas lesmas. A culpa não seria minha se eu acabasse raspando na lateral de um ou passando por cima do outro, afinal, ninguém mandou ficarem no meu caminho naquele dia.

 

Sentir o vento da velocidade era bom, e os riscos luminosos que passavam pela minha janela me levavam para algum cenário psicodélico muito louco. E a diversão se iniciou de verdade quando o que me chateava começou a ficar interessante. Os imbecis dos carros de repente se transformaram nos obstáculos necessários pra coisa ficar radical.

 

Então era isso, meu amigo, eu era Rubens Bittencourt, dezenove anos, dirigindo sua humilde máquina sobre rodas no seu próprio need for speed. Não precisando de mais nada além daquela avenida e do som no rádio me fazendo esquecer as buzinadas irritantes dos meus parceiros e da sirene da policia.

 

Sabe, eu bem que poderia encostar, me render, acabar com tudo aquilo logo e evitar que o pior pudesse acontecer. Realmente, eu estava querendo me matar, era isso? Mas como eu poderia diminuir a velocidade e aceitar as leis daquela cidade uma vez que eu estava me sentindo tão bem? E a cada carro que eu desviava e sinal vermelho que eu ultrapassava, cantando o pneu e rindo da cara de assustado dos outros, eu me sentia invencível.

 

De jeito nenhum eu afundaria essa sensação e a afogaria. Continuaria a seguir em frente, sem dar brecha para o meu bom senso que continuava a me estapear fortemente o rosto.

 

Enquanto eu pudesse ganhar estrada a frente, não pararia. Deixar tudo para trás era tão prazeroso.

 

E era exatamente isso o que eu estava fazendo. Deixando tudo para trás, para bem longe, os fazendo comer poeira. Porque no momento eu só queria me importar comigo.

 

Estipulando algumas considerações então, comecei declarando morta uma família. Segundo, minha vida seria prioridade. Sendo assim, tratei de por em prática essa condição antes que fosse tarde demais. Pelo retrovisor a viatura parecia crescer de tamanho rapidamente.

 

Merda! Eles estavam no meu pé.

 

Certo, correr feito louco pela avenida e acabar morrendo, bem, isso era aceitável. Já ser pego pela policia e virar mulherzinha de cela, bem, isso jamais. Se a minha segunda condição estipulada era a prioridade pela minha vida, então eu bancaria o fugitivo, porque eu preferiria a morte a ter a minha bundinha divida com alguém.

 

A alguns metros eu via a pequena luz vermelha, que em segundos aumentou de tamanho e já sumira por cima do meu pára-brisa. Pelo retrovisor festejei ao ver a viatura ter que desviar de um furgão que surgiu, e com isso eu ganhei distancia.

 

Eu realmente não sabia de onde estava tirando toda aquela habilidade. Era a primeira vez que eu fazia tal coisa. Talvez eu tivesse nascido pra isso e só descobrira agora.

 

Estava uma delicia correr pela Avenida Paulista, mas agora eu tinha que dizer Adeus a ela. Não poderia continuar ali agora com a policia atrás de mim. Seguir em frente não me ajudaria em nada. Precisava criar um labirinto para que eles pudessem se perder.

 

Não me importando com a placa que me proibia virar para a direita, a esnobei e fiz a curva. Dei de encontro com um Sedan preto que me cegou os olhos, mas não me matou. Quando vi, a estrada estava livre a minha frente. Pelo retrovisor, me desculpei sinceramente ao Sedan que rodava pela calçada e acabou por bater na traseira de um ônibus urbano que atravessava o sinal.

 

Rezei baixinho para que ninguém tivesse se ferido gravemente.

 

A próxima esquina era a minha, e a virei bem a tempo das luzes vermelhas e azuis piscarem em meu retrovisor.

 

Beleza! A rua estava vazia, e em segundos contornava mais uma esquina.

 

Fui recortando um labirinto facilmente, trapaceando aqueles idiotas. Não tinha muita certeza por onde eu estava indo, não conhecia aquele lugar. Pelo menos não aquele caminho. Por que o lugar onde eu fui parar já me havia sido apresentado uma vez.

 

A primeira vez que fui à Rua Dez da zona Oeste eu tinha somente quinze anos. Havíamos enganado os nossos pais, dizendo que dormiríamos um na casa do outro, e crentes de que estávamos bancando os espertos, pegamos um ônibus e chegamos ali, completamente ansiosos por mulheres bonitas e muita bebida.

 

Foi um erro total. Tentamos todas as casas noturnas da rua, mas ninguém deixou os pirralhos de cara limpa e olhos de bebês entrarem. No final da noite acabamos com a barriga doendo de fome e tivermos que ligar para os nossos pais.

 

Ri só de lembrar daquele dia. Apesar de tudo, foi legal. Menos a parte do castigo. Tinha ficado uma semana sem treino de Tênis e sem ver ninguém do colégio.

 

Bom, o lugar não mudara nada desde quatro anos atrás. A rua continuava dominada pelas pessoas e a as luzes coloridas davam vida e iluminavam tudo a frente. Tive que reduzir até os vinte para poder passar por ali. A minha intenção não era matar ninguém.

 

Tentei encontrar alguma vaga, na intenção de estacionar e me esconder dentro de um bar até o primeiro raio de sol atingir o solo. Mas como era de se esperar o lugar estava lotado.

 

O jeito foi fazer daquele meu passeio uma pausa da adrenalina a qual eu estivera completamente tomado. E segui a vinte por hora dividindo a minha atenção entre o pessoal e o retrovisor. Não tinha muita certeza se havia mesmo despistado a viatura que me perseguia, então era melhor não bobear. Talvez fosse apenas encanação minha, afinal, não passaria pela cabeça daqueles caras que eu pegaria uma das ruas mais apinhadas de gente como rota de fuga.

 

Subestimar meus amigos policias havia sido um erro.

 

Eu estava a metade da rua quando aquelas luzes infernais apareceram. Me encontrando, a viatura pegou a Rua Dez e se preparou para arrebentar o meu traseiro. Não pensei duas vezes. Rezei para que as pessoas a minha frente fossem espertas e rápidas. E à gritos de imbecil e maluco, fui acelerando.

 

Estava para atingir os cinqüenta, quando tive que frear abruptamente.

 

- VOCÊ QUER MORRER? – berrei, sentindo o suor descendo pela minha nuca e escorregando coluna abaixo.

 

- Idiota! – ela me gritou, dando um tapa no focinho do meu Passat vermelho querido.

 

Fiquei puto.

 

Não soube identificar se ela estava assustada ou brava comigo. A garota de cabelos pretos e lisos, franjinha cortada e olhos bem pintados de preto, me encarava na indecisão se me atacava ou não.

 

Ela vestia algum tipo de roupa brilhosa preta que eu não soube dizer o que era, e continuava debruçada sobre o meu carro, a minha frente, me olhando daquele jeito e me impedindo de seguir em frente.

 

Então seus lábios grossos e vermelhos se abriram.

 

- Está fugindo da policia por acaso!? – ela exclamou, ríspida.

 

- É, por acaso eu estou. – gritei para ela. – Se me dar licença, será que pode sair da frente. – com todo o respeito, tentei manter a voz gentil.

 

Se impressionando comigo, suas sobrancelhas se ergueram e ela entortou sua boca. Se afastou do carro, mas não saiu da frente.

 

- Mesmo? – ela perguntou.

 

Impressão minha eu ela parecia sorrir.

 

Enquanto isso, a viatura atrás de mim se aproximava pronta a me capturar.

 

- Mesmo! – respondi a ela. – Agora se me dá licença...

 

Rosnei o motor ameaçando ir pra cima dela, e num salto ela se juntou com suas amigas a beira da sarjeta.

 

- Muito obrigado. – eu disse, ao passar por ela.

 

- Por que está fugindo da policia? – pousando as mãos na janela do passageiro. Ela mais uma vez me impediu de ir adiante.

 

- Outro dia a gente bate papo, garota, agora estou com muita pressa. – eu disse, tentando ser o mais educado possível.

 

Sem dizer nada, ela abriu a porta e se meteu no banco ao meu lado.

 

- Me conte tudo pelo caminho. – ela me sorriu ansiosa e excitada. Seus olhos grandes brilharam e sua boca grossa rasgou-se de bochecha a bochecha.

 

Eu não costumava ter fracos por garotas bonitas, mas ela acabou me deixando meio tonto.

 

- Você é doida. – eu disse, a encarando sem acreditar no que acontecia.

 

- Vai logo! – então ela berrou, e quanto percebi, a viatura estava a poucos metros de me atingir.

 

Pisei no acelerador e abrir um mar de gente até chegar a esquina, aonde virei inevitavelmente sem deixar de cantar um pneu.

 

- Então... por que você está fugindo da policia? – ela me perguntou, disposta a escutar e parecendo muito interessada.

 

Olhei para ela de soslaio, tentando acreditar que sua presença ali era mesmo real. E que eu ouvira mesmo a sua pergunta.

 

- Você só pode ser doida. – eu disse.

 

- Tudo bem, se não quiser contar agora eu entendo. Não quero te atrapalhar... ei, cuidado!

 

A minha frente um mini furgão apareceu de repente, como se tivesse caído do céu. Bruscamente o contornei, e acabei subindo na calçada.

 

Aos meus ouvidos, chegaram risos e o xingo que eu ouvi de longe.

 

- Ei, dessa vez eu quase bati! – disse alarmante. – Não foi engraçado.

 

- Eu sei, mas é que... é que... – ela tentava dizer, buscando uma brecha entre aquela risada arranhada. – é que foi demais. Foi demais! Irado!

 

- Aposto que se tivéssemos quebrado a cara não teria sido tão irado assim. – a censurei.

 

- Eu sei. – ela concordou, ainda bem humorada. – Uau, adoro essa musica.

 

No radio tocava She’s Eletric.

 

- Oasis é uma das minhas bandas preferidas. – ela disse, movimentando-se o corpo conforme a musica.

 

- Me diz hein! Quem é você? – eu fui bem direto.

 

- Alicia. E você, qual o seu nome?

 

Eu ri.

 

- Não era bem isso que eu tava querendo saber.

 

- Então o que?

 

- Que tipo de pessoa entra no carro de um fugitivo da policia? – especifiquei. – E sem sequer conhecer ele. – acrescentei, enfatizando a minha questão.

 

- O tipo de pessoa que procura experiências novas. – ela respondeu, empolgada.

 

- Experiências excêntricas. – a corrigi.

 

Continuando a se balançar conforme a musica, ela não me respondeu nada senão somente um sorriso largo, achando divertido tudo aquilo.

 

- Você é mesmo doida... – murmurei.

 

- Vai, me diz seu nome.

 

- É Rubens.

 

- Prazer, Rubens. Será que você poderia me dar uma carona até em casa, depois que essa perseguição acabar? – sua tranqüilidade me afetou de tal jeito, que tive vontade de abrir a porta e arremessá-la no asfalto.

 

- Não posso te garantir isso, sabe... dependendo de como acabar essa perseguição iremos parar no mesmo lugar. Então você terá que chamar o seu pai pra vir te buscar e te levar pra casa.

 

- Péssima idéia. – ela avaliou.

 

- Sabe, também concordo. Por que não quero ir pra trás das grades.

 

- Você ta com drogas no carro, é isso? – ela perguntou, inocentemente crente nessa possibilidade.

 

- Não! Isso mata o cérebro.

 

- Que nada! Já dei uma pitada uma vez... foi bom. – ela confessou. – Só não curti muito o pó. Acho que prefiro a erva mesmo...

 

- Bom, não sou traficante se quer saber. – esclareci as coisas.

 

- Não tem cara mesmo... você nem parece bandido nem nada.

 

- É por que não sou. – respondi categoricamente.

 

- Então por que a policia está atrás de você, cara? – ela perguntou, seriamente.

 

- É complicado... – eu suspirei, sentindo o desabafo pinicar na minha língua.

 

- Já sei! – ela exclamou. – Você roubou por uma causa justa. Para comprar remédios para sua mãe doente. E esse carro também é roubado.

 

Não consegui evitar e gargalhei.

 

- Não mesmo. – respondi.

 

- Então me conta. – ela pediu.

 

- Você está com o sinto? – eu perguntei, assim que atingi a esquina. Agora a segurança dela era a minha responsabilidade. Tudo o que eu precisava!

 

- Acho melhor eu colocar, não é?

 

- Eu acho sim. – disse firmemente.

 

Entramos na Avenida Paulista e então pude ganhar velocidade. A menina ao meu lado vibrava a cada carro que eu desviava e a cada sinal vermelho que ultrapassávamos. Eu poderia estar curtindo também, rindo dos bocós que continuavam na minha cola, se não fosse ela, sentada ao meu lado. Inserir uma pessoa nessa minha súbita loucura não estava em meus planos.

 

Precisava me livrar dela.

 

- Onde você mora? É pra lá que eu vou.

 

- Ops... – a ouvir dizer enquanto eu estava vidrado a estrada a minha frente e aos carros que eu tinha que desviar.

 

- O que foi? – perguntei. Mas ela não precisou me responder.

 

Olhando pelo meu retrovisor vi claramente mais uma viatura se juntando a outra naquela minha caçada.

 

- Fala sério, o que você fez hein? – Alicia perguntou, e pude perceber que seu entusiasmo naquilo tudo começava a se apagar.

 

- Andar em alta velocidade?

 

- Só isso? Não fez mesmo nada de errado? – pude sentir ela me encarando. Dei uma olhada furtiva pro lado e ela estava mesmo me fitando fixamente.

 

- Olha só, eu só precisava sair de carro hoje sem previsão para voltar, sabe? Nunca aconteceu isso com você? Nunca te deu vontade de pegar o carro e sair sem saber muito bem pra onde ir. Só ir...

 

- Já. – ela deu um suspiro e se afundou no banco.

 

- Pois é. Era o que eu estava fazendo. Sei da imprudência disso, ta bom. Mas a coisa fugiu do controle. E agora você está aqui comigo, mais um problema para eu resolver.

 

- Fica calmo! A gente vai se livrar dessas viaturas.

 

Bem que eu queria acreditar nela, mas tava começando a ficar descrente disso.

 

- Olha só! – então ela disse, se inclinando para o pára-brisa do carro e notado algo que eu rezei para que não fosse um problema. – Esses caras estão levando mesmo a coisa a sério.

 

Bem acima de nós, a uma certa altura audível para que pudéssemos identificar o objeto voado, um helicóptero nos seguia.

 

- Você só pode ta brincando comigo...

 

- Não mesmo. – ela sentenciou.

 

Imediatamente iniciei um processo de estratégia. Tinha que pensar em como me livrar não mais de uma viatura, mas duas e um helicóptero também. Isso parecia mais difícil do que vídeo-game. Claro, era vida real.

 

- Me diz, o que deu em você para querer sair de casa e querer rodar pela cidade toda? – ela perguntou, me desconcentrando. – Ah! E em alta velocidade.

 

- Coisas pessoais. – respondi.

 

- Eu sei. Mas que tipo de coisas pessoas? – ela insistiu.

 

- Coisas das quais não vou dividir com você. – fui inflexível. – Agora pare de falar comigo, preciso pensar.

 

Por sorte os sinais a nossa frente tornavam-se verde na hora exata. Eu contava com isso para o próximo, mas a coisa não se repetiu. Um ônibus urbano a minha frente me deu um grande trabalho, e tive que desviar dele, derrapando pela direita e pegando a calçada. Por sorte havia poucas pessoas ali.

 

- Seu IDIOTA! – o grito entrou pela janela do passageiro.

 

- Já sei o que irei fazer... – falei em voz alta, não necessariamente querendo dividir com Alicia os meus planos. – Preciso de um shopping.

 

- Compras uma hora dessas, é? – ela brincou.

 

- Acho que tem um virando por aqui... – pegando a próxima rua à direita, sai diretamente aonde eu queria sair. O shopping parecia ter surgido no momento certo, como se todas as forças do universo estivessem a nosso favor.

 

- Beleza!

 

- Teve uma vez que eu peguei o carro do meu namorado e dei uma sumida, mas era porque eu estava muito brava com ele. – Alicia começou a contar, como se estivesse sentada em um mesa toda decorada para o chá das cinco, e não num Passat a quase cem por hora fugindo da policia. – Ele tem um Audi prata, e sabe, é tipo o bebê dele. Quando eu apareci no outro dia você precisava ter visto a cara dele... só sei que foi bom o tempo que fiquei sozinha andando por ai. Só não estava nessa velocidade absurda...

 

- Bom, então você me entende.

 

- Também brigou com a namorada? – ela sugeriu.

 

- Não foi bem isso...

 

- Então o que foi? Vocês terminaram de vez?

 

- Não tenho namorada;

 

- Então com quem você brigou?

 

Aquele papo precisava ser interrompido. Eu estava para subir a rampa do shopping e entrar no estacionamento, para realizar o meu plano de fuga. E precisava de concentração.

 

- Vai me dizer o que você está pretendendo ou não?

 

- Preciso fugir do olho de águia. – eu disse, e pisquei para ela.

 

- Certo... mas e depois? Vamos nos esconder em alguma loja?

 

- Não... vamos sair pela outra saída.

 

- Seu idiota, isso não vai funcionar! Provavelmente já sacaram o seu plano.

 

- Você acha isso? – olhei de soslaio para ela, dando um pouco de crédito para o que aquela menina maluca dizia.

 

- Cara, eles são profissionais. – ela me lembrou.

 

- Então o que você sugere? Já estamos aqui dentro.

 

- Fácil. Volte.

 

- Como é!? – quase engasguei.

 

- Volte. – ela disse categoricamente. – Volte e saia por onde nós entremos.

 

O que ela dizia fazia sentido, e parecia ser a melhor das decisões. Não havia nenhuma viatura nos perseguindo dentro do estacionamento do shopping, então meus neurônios só poderiam me responder que nossos perseguidores já estariam nos esperando na próxima saída.

 

Mais uma vez meu pneu cantou, parecendo bem mais aprimorado.

 

- Espero que você esteja certa. – rezei, enquanto voltava.

 

Não havia mesmo sinal de viatura ali. Entretanto havia outro problema. A entrada funcionava apenas como entrada, e não como saída. Com a cancela de trafego abaixada, estávamos presos.

 

- O que a gente faz, agora? – comecei a diminuir a velocidade à medida que chegávamos à entrada bloqueada.

 

- Da ré. – me instruiu Alicia. – E depois acelere.

 

- Ta querendo dizer que vamos ter que arrebentar o negócio?

 

- Não há outro jeito.

 

Sentindo um pouco de pena do meu pobre Passat, dei a ré que eu precisava até achar que já tinha distancia suficiente da cancela pra ganhar a velocidade necessária. Então, pisei fundo.

 

Estávamos para arregaçar com a cancela quando ela abriu de repente, e num reflexo muito rápido do qual me orgulhei, desviei do carro que estava para entrar no estacionamento.

 

Voando alguns centímetros da rampa, atingimos o asfalto livre de viaturas.

 

- Cara! Você conseguiu! – exclamou entusiasmada Alicia, movimentando-se energeticamente em seu banco.

 

- Nem acredito... – suspirei aliviado, pegando a avenida. – Agora... vou te deixar em casa.

 

Naquela noite eu só queria mesmo era sumir, correr um pouco sobre as rodas da minha maquina sem pensar em mais nada. Se eu soubesse que entrar na Rua Dez da zona Oeste me traria aquele problema no banco ao lado, acho que teria preferido percorrer mais um pouco a avenida com os caras na minha cola.

 

- Obrigada pela carona. Não vai cobrar, não é?

 

- Não. Só me diz o seu endereço pra eu te despejar, então já me sentirei pago.

 

- Alameda dos Pássaros. Sabe onde é?

 

Não muito bem, mas tinha idéia de como chegar lá. Era um bairro de gente muito cheia da grana, e dando uma olhada de inspeção na garota ao meu lado, tive certeza de que ela tinha um porte de menina rica. Ah, e maluca também.

 

- Melhor entrar por essa rua... – ela atalhou em dizer, assim que dei sinal para virar a esquerda. – Por aí vamos acabar nos encontrando com nossos amigos. E não queremos isso.

 

- Não.

 

- Vire na próxima a esquerda. – ela ordenou.

 

- Está bem. – eu disse, cedendo as suas instruções. – Você conhece bem por aqui. – observei.

 

- Conheço. Vivo na noite por aqui... quer dizer, quando dá. A maior parte do tempo estou ocupada na universidade. Digo, com as festas da universidade. – ela soltou uma gargalhada e se balançou pra frente do banco. – Ei, vou trocar de musica...

 

- Você estuda o que?

 

- Biologia... caramba, amo essa musica... – ela prendeu os cabelos com as mãos e se encostou no banco, fechando os olhos. Levemente, conforme a musica, seus lábios se movimentavam.

 

- Me diz, como uma estudante de biologia pode ser tão maluca como você? – questionei. – Em geral, elas estão em suas casas estudado plantinhas ou viajando a pesquisas.

 

- Isso parece tão chato. – ela debochou.

 

Pensei em perguntar se então o que ela estudava era mesmo o que ela queria, mas achei que não havia necessidade de levar a conversa para esse lado.

 

- Afinal, o que você tem na cabeça? – perguntei. – Por que entrou no meu carro? Sem o lance de “adoro experimentar coisas novas”. Não vai colar...

 

- Se eu te responder que é por que eu sou maluca, você vai entender?

 

- Vou. Por que ta na cara que você é maluca.

 

- Então é por isso. – ela disse, soltando os cabelos que ela segurava com as mãos e me olhando profundamente. Seus grandes olhos pareceram querer me dizer alguma coisa, mas infelizmente eram incapazes de falar. – Escuta... você podia parar ali?

 

- Ali aonde?

 

- Ali naquela conveniência... – ela apontou.

 

Primeiro pensei se ela se lembrava que apesar de termos despistados a policia, ela ainda estava atrás de nós. De jeito nenhum parar em algum lugar ali na cidade seria algo de juízo a se fazer estando nós nas condições que estávamos. Mas então olhei para ela... havia uma inteligência esperta em seu rosto, e apesar de maluca, ela parecia bem ciente de que aquela parada que ela pedia não nos traria problema algum.

 

- Tem certeza, escuta... seria melhor a gente dar o fora o quanto antes daqui...

 

- Relaxa. – ela me interrompeu. – Vai ser rápido. Só preciso de umas coisas...

 

Resolvi então acreditar na garota que me ajudara a fugir da policia.

 

- Está bem... mas seja rápida.

 

Estacionei numa vaga que parecia estar de presente para nós, bem em frente a porta de vidro da loja de conveniência. Desliguei o carro e então sai junto com ela, achando que se caso a policia aparecesse, talvez fosse melhor eu usar as minhas pernas e correr pelas sombras da cidade.

 

Assim que entramos, meu olhos logo pregaram no televisor acima do balcão. Tive medo de encontrar na tela a placa do meu carro e a informante do telejornal mostrando um retrato falado meu. Mas apenas um cara de terno e rosto engraçado entrevistava aquela artista iniciante num talk-show.

 

- Ei, Rubens! – Alicia me chamou. – O que você prefere?

 

Corri até ela, nos fundos da loja.

 

- Gosta dessa bebida? – ela perguntou.

 

- Não.

 

- Mas eu gosto. – ela gemeu, fazendo beicinho para a garrafa de vodca.

 

- Então leve. – eu sugeri.

 

Eu sentia minhas mãos dentro dos bolsos da calça suarem, e meu pé batia freneticamente no chão. Será que ela tinha que entrar em um dilema sobre qual bebida alcoólica escolher?

 

- Já sei. Levarei as duas. – Ela sorriu feliz, pronta a fechar a geladeira quando interrompeu o processo. – Ei! E você? Não vai levar nada.

 

- Não.

 

- Mas seu buço está suado. – ela reparou. – E essa gotinha descendo pela sua têmpora? – seu dedo cutucou a minha testa e ela sorriu. – Cara, você está suando. Precisa de uma bebida pra se refrescar. Vai, pega logo alguma coisa.

 

- Certo. – eu disse, cedendo a ela mais uma vez para que aquilo andasse rápido.

 

Abri a geladeira e procurei alguma coisa.

 

- Pronto. – em fim pegando o que eu queria, comecei a andar até o caixa sem esperar por ela.

 

- Fala sério! Uma caixa de leite? – ela parecia ultrajada.

 

- Qual o problema? – perguntei, enquanto pagava.

 

- É uma caixa de leite. Esse é o problema.

 

- Não bebo álcool. – respondi a ela.

 

- Caramba... o fugitivo da policia bebe leite desnatado. – ela declarou, admirada.

 

Percebi os olhos do menino de sardas no caixa olhar para mim e se afastar alguns centímetros da bancada.

 

- Ei! Não fale isso alto... – sussurrei rispidamente pra ela.

 

- Vem, vamos... – ela então puxou minha jaqueta e me levou pra fora da loja.

 

- Ei, as bebidas! – gritou o caixa, enquanto saímos. Tentei parar e voltar parar saber de que bebidas ele falava, afinal, eu só comprara uma caixa de leite, mas Alicia continuava a me puxar.

 

- Ei, garota! Você tem que pagar por essas bebidas. – gritou o menino, contornando a bancada e correndo até nós.

 

Fiquei paralisado.

 

- Você não pagou?

 

- Entra logo no carro! – ela ordenou, já batendo a porta.

 

Quando o menino surgiu na porta ao lado de um cara mais alto, e com cara de mau, mais uma vez cedi à Alicia.

 

- Desculpa, queridos. Coloca na conta. – e mandando um beijinho para eles, ela abriu uma das garrafas com a ajuda do vidro meio aberto da janela e a entornou.

 

Derrapei ao dar uma ré brusca e acelerei.

 

- Você roubou, Alicia! – gritei com ela, a acusando.

 

- E daí? Sou fugitiva agora...

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