Cult-novela

CAPÍTULO DOIS

06/02/2010 09:12

Quando se Ama um Carro

Ela terminava com uma garrafa de vodka antes mesmo de percorremos dez quarteirões, e só pra constar eu estava a oitenta quilômetros por hora. Diminui a velocidade assim que percebi que aqueles caras da loja não pretendiam nos persegui, e virei a próxima esquina como Alicia me mandara.

Pelo lado que ela me guiava, eu tomava rumo de sua casa, até a Alameda dos Pássaros, um bairro famoso na cidade por ser recheado de mansões. Os grandes empresários e políticos moravam por lá.

Olhei de canto para a garota de vestido caro e de rosto de porcelana. Ela era tão agressiva ao mesmo tempo que delicada. Sua boca se juntava a boca da garrafa como se ambas fossem imãs, e a bebida descia rapidamente por seu pescoço. Eu podia ver sua pele se contorcendo conforme o liquido caía.

Será que todas essas meninas ricas eram malucas desse jeito? Eu imaginava que elas estariam soltas por ai fazendo compras e fingindo que estudavam, dormindo cedo para no outro dia logo de manhã visitar o aras de uma amiga e fofocar, enquanto os primos terminam uma partida de pólo. Não era isso o que elas faziam?

Se não era, então foi alguma vez. Agora parecia ser diferente pelo jeito.

Talvez eu devesse não generalizar, e pensar que só podia haver mesmo uma garota no mundo, que por ventura era rica, capaz de entrar no carro de um estranho fugitivo da policia e roubar três garrafas de vodca: Ela. Aquela tal de Alicia.

Percebendo que eu lançava olhares fugazes para ela, sua boca se desprendeu da garrafa e ela a suspendeu na minha frente.

- Quer um gole? – perguntou despreocupadamente.

Com a outra mão, ela mudava a musica que tocava no radio. Passou por umas três faixas até deixar que Champagne Supernova tocasse.

- Cara, piro nessa musica. – ela comentou.

A garrafa continuava entre meus olhos, me atrapalhando a vista à frente.

Também era uma das minhas musicas preferidas. Mas naquele momento, senti que qualquer musica do Oasis estava sendo traumatizada pela presença daquela garota, e que toda vez que eu voltasse ao ouvir aquele CD seu rosto voltaria a minha cabeça.

Eu já começava a sofrer a perturbação por antecipação, mesmo não sabendo aonde aquilo ia dar.

- Ei, cara! Vai, bebe aí! Qual o seu nome mesmo?

Ela quase me enfiou a força o bico da garrafa na minha boca. Mas eu desviei. Será que ela não percebia que eu não estava querendo beber aquilo, porque continuava a insistir?

- É Rubens.

- Então Rubens, não quer tomar um gole? Ou quero uma nova? – enfim ela tirou a garrafa da minha frente e tratou de tomar todo o restante do liquido alcoólico em um só gole.

- Já disse que não bebo álcool. – lembrei a ela. – E não sei se você percebeu, eu estou dirigindo. – tratei de lembrar esse outro detalhe caso ela tivesse esquecido que estava dentro de um carro.

- Tudo bem... mas era só um golinho. – jogando a garrafa vazia no banco de trás do meu carro, ela logo abriu a outra com a ajuda do vidro meio aberto da janela.

- Ei, meu carro não é lixo. – fiz uma pequena observação, tentando continuar a ser bem educado. Apesar de que já conseguia sentir meus lábios tremendo e a excitação em minha garganta pronta a explodir e falar grosso com aquela garota. O que ela tava pensando afinal?

- Tudo bem... depois jogamos no lixo. Não vai ficar ai para sempre não é. – ela me olhou com cara de pedagoga, como se o errado era eu e ela a certa. – Ou você prefere que eu jogue pela janela. Poluir o meio ambiente, caro Rubens. É isso?

O sacarmos me irritou tanto que achei que ia frear, abrir a porta e empurrá-la para a sarjeta. Mas não fiz nada disso. Continuei indo em frente, com a irritação se acomodando estranhamento dentro de mim. Como isso era possível?

Seu sarcasmo me provocara, mas a minha complacência parecia secá-lo de mim. Por quê isso?

Olhei novamente para ela, naquele tempo fugaz, registrando o perfil delicado de seu rosto, e os cabelos finos e lisos de sua franja sacolejando-se pelo vento que corria por nós.

- Tem certeza que não quer? – ela perguntou, ao me flagrar olhar para ela.

Mais uma vez a boca da garrafa de vodka se suspendeu diante dos meus olhos.

Rapidamente, livrei uma das mãos do volante e empurrei delicadamente a garrafa de volta pra ela.

- Já disse que não.

- Então por que tava me olhando? – ela perguntou, se debruçando um pouco sobre mim. Senti sua respiração pinicar em meu pescoço.

A olhei surpreso, por tempo até demais.

- Porque não dá pra acreditar em você. – disse, voltando meu olhar atento a rua a nossa frente.

- Sou inacreditável?

- Sim.

- Só porque estou no carro de um fugitivo da policia? Acha isso algo inacreditável?

- Não. – respondi a ela e lambi os lábios me preparando para esclarecer melhor o meu ponto de vista. – Acho inacreditável uma garota entrar no carro de um fugitivo por puro prazer. Fala sério, isso é um dos mais estúpidos fetiches que já conheci.

Ela riu, achando graça naquilo.

- Também acho estúpido. – ela concordou, antes de meter a boca na garrafa de vodka e inclinar o pescoço para trás. Ouvi ela engolindo tudo de uma vez.

- Se acha estúpido então por que pratica?

- Talvez estivesse bêbada. – ela observou.

- Não. Você está ficando bêbada agora. – a corrigi. – E afinal? Por que não pagou por essas bebidas? Você é rica.

- Achei que estava em meu direito de não pagar. – ela falou, seu olhar inteligente me matando.

- Como é?

- Sou uma fugitiva. Tenho direito a burlar leis.

- Não. Eu sou o fugitivo. – a corri novamente.

Assumindo isso, senti meu corpo estremecer e aos poucos meu bom senso foi me dizendo que eu havia feito algo muito imprudente. Agora que ele resolvia entrar em ação?

- É verdade. Você é o fugitivo. – ela balançou a cabeça, concordando comigo. – Mas no momento que entrei em seu carro, tecnicamente virei sua cúmplice.

- Não virou não.

- Virei sim. – ela disse firmemente. – Te ajudei a enganar aqueles caras.

Erguendo suas sobrancelhas perfeitamente feitas, Alicia me encarou pelos minutos que eu escolhi ficar em silencio, aceitando a sua condição como cúmplice e também fugitiva. Esboçando um sorriso meio torto ao ter minha mudez, ela se recostou no banco e terminou com toda a garrafa de uma vez.

- Bom... logo você deixará de ser fugitiva e minha cúmplice também, e seja lá mais o que... – eu disse. – Porque logo você estará em casa.

- E depois? – ela perguntou abruptamente. Foi quase um cuspi.

Seus olhos estavam presos a frente.

- Depois não sei! – exclamei, dando de ombros. – Depois suponho que você vai dormir ou sei lá... comer alguma coisa.

- Depois eu digo você, tonto. – seu pescoço dobrou sem que ela o desencostasse do banco e seus olhos me fitaram.

- Eu? – me surpreendi com a sua preocupação. – Bom... eu não sei. Na verdade, não é da sua conta.

- Você tem que se livrar do carro. – ela disse sem convites nenhum a uma opinião.

Como assim me livrar do meu Passat? Meu querido Passat.

- Do que você ta falando? Ta maluca?

- Você não pensa muito, não é, cara. – ela me olhou ultrajada pela minha falta de compreensão de suas palavras.

Por alguns segundos, me senti intimidado por ela. Mas passou logo, até eu me lembrar de que ela era uma riquinha bêbada e maluca. Não deveria me sentir intimidado por esse tipo de garota. Não mesmo.

- Eu jamais me livraria do meu Passat. O comprei com o meu suor, se quer saber.

- Bom, não tem outro jeito se você quiser definitivamente escapar dessa. – ela disse, continuando a me olhar daquele jeito superior.

Dessa vez a sensação intimidadora me domou por alguns segundos amais, quase minutos.

- Não estou entendendo. – confessei.

- Você não quer ser enjaulado, eu espero, não é? – ela perguntou, seu olhar fixador finalmente se desprendendo de mim e rodando pelo teto do meu carro. Um risinho esbarrou entre seus dentes. – Sabe o que caras da sua idade viram na cela, não é? Você tem o que, uns dezoito?

- Dezenove. – a corrigi.

- Não importa. Você viraria a mocinha.

- Eu sei disso! – exclamei. – Aonde você quer chegar, afinal? Fala logo.

- Cara, pensa bem! – seus olhos novamente se fixaram em mim; aqueles olhos redondos, cor de mel, brilhantes e hipnotizadores que me domavam e me intimidavam.

Dessa vez, ao invés de minutos, senti que seria pra sempre até ela dizer chegar e desviá-los de mim.

- Você não pode mais continuar a rodar por ai com esse carro agora... – ela continuou. – Ele já está marcado. Se te pegarem, você ta ferrado.

A garota maluca e bêbada mais uma vez me salvara. Porque ela tinha razão. Totalmente a razão. Eu não poderia mais continuar com o meu Passat rodando pela cidade agora que eu, imprudentemente, o havia manchado com a minha impulsividade.

Eu costumava ser um cara bom, um responsável rapaz. Mas aquele dia, eu senti que não agüentaria mais permanecer da pele do Rubens compassível. Não tinha como. Minha panela de pressão estourara.

- Onde você pretende deixar o carro? – ela me perguntou, ajudando a enfiar mais uma agulha em meu coração.

- Não sei... – murmurei, a dor em meu peito enfraquecendo a minha voz.

Não havia o que pensar, não havia o que planejar. Eu não tinha outra saída a não ser abandonar o meu Passat.

Era doloroso demais me livrar de algo pelo qual eu havia batalhado tanto para conseguir. Não só estava presente nele meus esforços, mas também o amor que nós humanos geralmente adquirimos por alguns bens materiais..

- Bom... te aconselho a deixar em um lugar bem longe da cidade, num matagal, não sei... num lugar assim. – ela sugeriu. – Se caso encontrarem você pode ganhar um problemão. Porque vão vir atrás de você.

- Isso não pode acontecer... – eu disse, mais para mim mesmo do que para ela.

- Então o abandone, ou melhor, o esconda. E não se preocupe, com o tempo a policia vai esquecer disso. Se já não esqueceu...

- Não, eu quero disser que isso, abandonar, não pode acontecer. – meu olhar duro encontrou com o olhar surpreso dela e pareceu que uma linha elétrica imaginária estourou entre nós.

- Rubens! Não tem outro jeito.

- Não vou me livrar do meu carro! – exclamei, decidido. – Não vou!

- E o que vai fazer então? Fugir pra outra cidade?

Aquela garota definitivamente não sabia nada sobre conseguir alguma coisa por si só. Ela provavelmente tinha tudo na palma da mão quando quisesse. Não passava pelas veias dela a emoção de ter se adquirido algo através por um real merecimento além de ser a filha amada de alguém cheio da grana.

Largar meu carro, me livrar dele pela burrada que eu havia feito ao sair por ai feito louco era mesmo o castigo que eu merecia. E no banco dele, Alicia parecia ser um bônus de culpa a qual eu não merecia mesmo.

Aceitar aquilo como indulgencia era inaceitável. Se eu tinha que abandonar alguma coisa, que fosse a cidade. Creio que a policia não se desdobraria tanto em busca de um individuo que ousara correr feito louco na Avenida Paulista. Em pouco tempo eu já estaria esquecido, e poderia voltar para a cidade. Isso, caso eu quisesse. Porque de repente, a oportunidade de ir embora, de tentar outra vida, parecia uma opção que eu não havia percebido antes.

Qual seria a desvantagem de ir embora? A família? O lugar que eu conseguira como moradia? Bem, a família estava morta pra mim, e como eu pagaria o lugar se agora eu estava desempregado?

Outra cidade. Eu citei mentalmente. Lá eu começaria vida nova.

- Toma... – mais uma vez uma garrafa foi suspensa diante do meus olhos. Mas agora, Alicia segurava a minha garrafa de leite. A que eu, honestamente, havia pago e comprado por direito. – Bebe um pouquinho e faça a decisão correta.

Aceitando pela primeira vez algo das mãos delas, depois de suas vária sugestões que me salvaram, entornei o liquido branco que eu tanto gostava e depois lambi os lábios.

- Eu já tomei a decisão correta. Vou deixar a cidade.

- O que!? – ela arfou, parecendo perder ar devido o golpe daquela minha decisão. – Você ta falando sério? Tudo por causa dessa lata velha?

- Não ofende. – falei rispidamente.

- Cara, acho que o maluco aqui é você. – ela continuou a me fixar os olhos, mas dessa vez não estavam inteligentes e intimidadores. Estavam conturbados e piscavam rapidamente.

- Não é só por causa do carro. – eu disse. – Acho que se o problema não fosse unicamente esse, de qualquer forma eu teria chegado a essa decisão. Talvez de manhã cedo ou daqui a algumas horas quando eu te deixasse em casa. Não importa... eu iria cogitar essa idéia cedo ou mais tarde, tendo que abandonar carro ou não.

Foi a vez de Alicia ficar muda depois que eu falara. E me senti um pouco orgulhoso por isso. Eu a deixara surpresa, depois de ser ela por varias ações ser a causadora desse efeito em mim.

- O que aconteceu que você quer ir embora da cidade? – ela perguntou, sua voz saltitando as palavras delicadamente sobre a língua. – O que aconteceu?

- Já tinha te dito. Coisas pessoais.

- Não posso saber?

- Por que quer saber? – perguntei. No momento, entravamos por uma rua repleta de arvores altas e cercada por casas suntuosas. Havíamos chegado a Alameda dos Pássaros. – Veja... está em casa.

Alicia, com os olhos presos a mim, não pareceu muito se importar com esse fato.

- Ou você ama mesmo esse carro ou o outro motivo para você deixar a cidade deve ser muito forte. – ela observou.

- É, mais ou menos isso. – eu assenti de leve com a cabeça. – Amo muito esse carro e o outro motivo é bem forte e influente em minha decisão. A verdade é que, sair da cidade parece uma oportunidade que eu não havia pesando antes.

- Que oportunidade? – ela perguntou, ainda curiosa demais e com aqueles olhos conturbados sobre mim.

- Oportunidade de uma vida como eu quero. – respondi. – Entendeu?

- Sim. – com somente essa palavra, Alicia cerrou o assuntou ao se virar no banco de frente para o para brisa.

- Certo, onde é a sua casa?

- Continue indo reto. – ela falou, sua voz saindo estranha. Parecia automática, como se ela estivesse pensando em outras coisas.

Acelerei um pouco o carro e passei por três quarteirões num sopro. Minha vontade de me ver livre daquela menina era grande. Eu  ansiava por estar sozinho e pensar melhor no meu destino.

- É aqui? – eu perguntei.

- Não. – novamente aquela voz automática.

- Aqui?

- Também não.

- Parece que não chegamos nunca. Você ta mesmo prestando atenção por onde estou indo?

- Claro que estou, conheço muito bem o meu bairro. – ela falou, em fim sua voz tomando vida.

Virando-se no banco para mim, ela tremeu os lábios pronta a falar alguma coisa mais, porém hesitou e os chupou para dentro.

Percebi, mas continuei calado.

- É aqui?

- Vira ai. – ela disse.

Virei no sentido que o dedo dela me indicava, a minha esquerda. Entrei numa ruma igualmente as outras, bordada por jardins bem cuidados e extensos e casarões de janelas acesas.

- É aquela ali. – ela apontou para a próxima casa, a de esquina.

Era uma bela construção, de três andares, com janelas grandes no térreo e sacadas no pavimento superior. Quase todas as luzes estavam apagadas.

- Bom... está entregue. – parando o carro em frente a sua casa, me permiti esticar o corpo no banco e torcer o pescoço. O alivio de dar uma pausa instigou meu corpo a querer estender aquele intervalo por mais tempo. Mas eu não podia, tinha logo que sair dali e tratar dos meus assuntos.

Voltando a colocar as mãos no volante e pronto a dar o fora dali, notei que Alicia continuava deitada no banco, me olhando.

- Não vai sair!?

- Vou. – ela disse num sussurro.

Piscando os olhos como se percebesse que era preciso piscá-los, Alicia se movimentou no banco e abriu a porta.

Contornando o carro até a calçada, os faróis do meu Passat iluminaram aquele seu vestido brilhoso e seus olhos também cintilaram um pouco ao me olharem com interesse enquanto ela andava até a calçada.

Liguei o carro pronto a ir embora, quando ela pousou o cotovelo no minha janela.

- Obrigada. – ela disse, esboçando um sorriso meigo pela primeira vez.

- Obrigado por ter me salvado. – eu disse, sinceramente agradecido por aquilo, ainda que parecesse estranho a minha declaração.

- Então... eu quero dizer... – ela começou, hesitante. – eu quero... te desejar uma boa viagem. Já que você vai embora da cidade.

- Vou sim.

- Boa sorte. – se afastando do carro, ela continuou a dar passos de ré sem tirar os olhos de mim. E com aquele sorriso meigo que parecia pender por cansaço, ela levantou a mão discretamente e acenou.

Ergui a mão como sinal e então logo a pousei de volta no volante, saindo dali de uma vez por todas.

Enquanto eu avançava alguns quarteirões, pude ver pelo retrovisor Alicia se adiantando para a sarjeta, tentando me alcançar com o olhar.

Fiquei a observando pelo espelho até que tive que virar a esquina, numa rua sem saída que acabava de frente a uma enorme mansão.

Não! Eu não estava apaixonado. Só instigado. 

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